segunda-feira, 13 de março de 2017

Novamente, nos vemos diante da era do ódio e das certezas


Devilman, 1973: a escalada de ódio e
violência de hoje não é coisa nova
Os tempos mudam, mas algumas coisas parecem não mudar. Nos vemos diante de uma retoma de legislações e discursos atacando minorias étnicas, políticas e religiosas. Na América de Trump, imigrantes muçulmanos de sete países tem sido barrados e barreiras aduaneiras tem sido fortalecidas. No Reino Unido, o Brexit venceu apelando para o temor de que "estrangeiros" roubassem empregos. Em grande parte da União Europeia, discursos nacionalistas e xenofóbicos tem alçado movimentos de extrema-direita ao palco. No Japão, vê se o crescimento de discursos militaristas, enquanto no Brasil vemos não apenas a ascenção de Bolsonaros e similares, como tentativas de proibir e criminalizar pensamentos dissidentes (como o projeto de lei de Eduardo Bolsonaro em 2016, que proíbia "o comunismo"), movimentos sindicais e movimentos civis.

Mas a perseguição estatal não é a única forma de perseguição que anda sendo vista. Tão preocupante quanto a perseguição "oficial" tem sido a adoção de táticas de intimidação por ativistas políticos ao redor do globo. Ameaças, agressões verbais, doxing e campanhas de censura tem se tornado cada vez mais comuns - e vistas cada vez mais como sendo parte do jogo político. 

Entre 2013 e 2014, sites e páginas ligadas a direita conservadora, como Movimento Brasil Livre, Revoltados ON Line e Folha Política espalharam um boato (sem apresentar fontes) de que o governo Dilma teria "importado" 50 mil haitianos e os registrado como eleitores para "roubar a eleição". No começo de 2015, o Revoltados ON Line acusou o imigrante Haitiano Auguste Lubain de ser parte do "exército comunista do PT". Ataques racistas pela internet - com ameaças e exposição de dados pessoais - tem se tornado cada vez mais comuns e certos movimentos tem crescido justamente através disso. 

Notícias falsas se tornaram tão abundantes a ponto de gerarem um termo novo: o pós verdade, e vários sites se especializaram em material deste tipo, sem qualquer preocupação com a veracidade do que divulgam. O caso maior disso em tempos recentes foram as afirmações do governo Trump sobre "o massacre de Bowling Green", um atentado terrorista inexistente "que não foi coberto", assim como teria sido ignorado pela mídia o atentado de Nice, ou o massacre de Orlando. Enquanto as notícias falsas crescem, os ataques à imprensa "manipuladora" aumentam, junto com as sugestões de censura e as agressões contra profissionais de imprensa.

Recentemente alvo de protestos violentos, o ativista da "direita alternativa" e jornalisa Milo Yiannopoulos se lançou ao sucesso usando generosamente de táticas persecutórias. Surfando a onda do movimento nerd Gamergate - já marcado por ataques pessoais, ameaças e exposição de "indesejáveis", em particular de autoras feministas - Yiannopoulos chegou às manchetes no ano passado após deflagrar uma campanha de intimidação contra a atriz Leslie Jones. Forjando tuítes para pintar a atriz como "violenta" e "racista", Yiannopoulos deu início a uma onda de ataques racistas contra Jones - e foi alçado pela Alt-Right ao posto de herói. 

O movimento que lhe alçou a fama já era infame por táticas como essa, nascido de um "textão" atacando a game designer Zoë Quinn por supostos favores sexuais em troca de resenhas positivas (resenhas essas que não existiram). Entre 2014 e 2015, o movimento mirou em designers de jogos, jornalistas e adminstradoras de comunidade alegando lutar por "ética no jornalismo de games" ao mesmo tempo em que exigia que revistas que avaliaram negativamente certos títulos fossem censuradas e "discursos ideológicos" fossem banidos da discussão. 

Em junho do ano passado, um grupo de ativistas de direita invadiu a UnB aos gritos de Fora PT e "Bolsonaro Presidente". Em meio ao confronto com alunos da instituição, rojões foram lançados pelos manifestantes. A esquerda da UnB já havia sido alvo de ataques pela direita radical em 2012, quando dois blogueiros, Marcelo Mello e Emerson Rodrigues, fizeram ameaças e planos para executar um massacre no centro de ciências sociais, visto por eles como "um antro de comunistas". 

Esse problema não se restringe à direita radical, no entanto. Após a Marcha das Mulheres deste ano, o vlogger Jonatan "Jontron" Jafari emitiu opiniões vistas por muitos como sendo ignorantes quanto ao movimento, ao governo Trump e os movimentos de refugiados e foi respondido com acusações de ser "nazista" e "um supremacista branco". Jafari foi bombardeado de ameaças por expressar uma opinião - mesmo que ignorante. Já em março, o historiador brasileiro Leandro Karnal se viu alvo de toda forma de crítica (válida) e ataque pelo crime imperdoável de publicar uma foto em um jantar com o juiz Sérgio Moro. De divulgador de pensamento progressista, Karnal foi chamado de traídor e enganador à fascista e nazista. 

Em 23 de dezembro do ano passado, o Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE foi vandalizado por alunos, supostamente ligados a movimentos stalinistas. Entre os professores que tiveram sua sala vandalizada, o professor de filosofia Rodrigo Jungmann - famoso por seu posicionamento de direita - postou fotos dos danos e das pichações, no qual se destacava a frase "Stalin matou pouco", usada com frequência por militantes do PCB. O ataque revela ou uma tentativa destes militantes de intimidar professores, ou de outros grupos de incriminá-los. 

As táticas nem sempre se tornam tão ostensivas, no entanto. Tanto na direita quanto na esquerda abundam admissões de perseguição ideológica no mercado de trabalho - seja na forma de textos sugerindo a demissão de funcionários "comunistas" ou em sugestões para ligações em massa para o local de trabalho de quem expressou opiniões "ofensivas". Igualmente, contas pessoais, endereços de e-mail, números de telefone e até endereços de casa e de familiares estão sujeitos a serem expostos por ativistas revoltados de ambos os lados em resposta a opiniões que devem ser eliminadas. 

Já há alguns anos, ativistas de direita falam abertamente em usar de violência - armada ou não - contra "comunistas", "viados" e "terroristas" (onde terrorista=todo e qualquer um que pareça árabe). Há menos tempo, o mesmo discurso começa a ser visto na esquerda, trocando apenas de alvo, mirando seus ímpetos destrutivos em nazistas e fascistas - duas categorias cujo uso frequentemente tem menos a ver com o que esses movimentos representam e mais com a pessoa ter dito ou feito algo "problemático" ou ofensivo. A violência se torna uma ferramenta em nome da censura e de evitar o debate - quer seja contra quem não merece o palanque, quer contra quem "me ofendeu". 

E junto com isso se populariza outra forma de censura. Movimentos estudantis de algumas universidades, grupos de Facebook, tumblrs e blogs, exigem o boicote e a censura de autores, artistas e obras "problemáticas". Análises a-históricas - e muitas vezes falsas - são usadas como base para exigir que essa ou aquela obra seja podada do cânone literário, musical, cinematográfico ou acadêmico. Ao mesmo tempo, conservadores exigem o mesmo, agressivamente exigindo que o material "transgressor" e "imoral" seja destruído e vetado das universidades, bibliotecas e cinemas. Assim como nos piores pesadelos de Ray Bradbury, livros se destinam ao fogo, não a leitura - e já tivemos algumas queimas de livros recentes, da queima pública do Corão por um pastor americano em 2011 ao incêndio na biblioteca da Universidade de Kwa-Zulu-Natal em setembro do ano passado e além. 

Não muito tempo atrás, houve uma sugestão - felizmente não popularizada - de censura acadêmica sendo espalhada pelo facebook: pegar a obra integral de autores acadêmicos - produtores de conhecimento - que em algum ponto expressaram opiniões racistas, machistas, xenofóbicas ou de qualquer forma ofensivas e retirar todas as referências ao autor, colar o texto na internet e atribuir à "autor anônimo". Seria a retomada da pratica romana de Damnatio Memoriae e do revisionismo histórico Stalinista, apagando completamente o ofensor da história, como se ele nunca existisse. Houve quem quisesse que a sugestão autoritária (ironicamente, propagada por quem se dizia em prol da liberdade) fosse estendida à literatura.

Agressão, ameaça, calúnia, censura, apagamento, exposição. Todas ferramentas usadas para silenciar "inimigos políticos". Táticas improdutivas e ineficientes, exaltando ânimos e firmando posições cada vez mais. Enquanto bolsominons se gabam de 'mitar' e ativistas de 'lacrar', cada lado se vê com mais e mais certeza de suas posições. Quem foi demitido por ser de esquerda não vai "ver a luz" e ir para a direita - só vai se convencer ainda mais da ganância de seu patrão, tampouco quem foi demitido por fazer comentários ofensivos online vai ver o erro do que pensa e faz - só vai se sentir prejudicado por aqueles que já odeia - mesmo que mereça punição ou reprimenda por seus atos. 

Não é com provocações e perseguições que opiniões serão mudadas ou que uma sociedade mais positiva será construída. Não é pela censura, pela agressão e pela ameaça que será feito o futuro. Mas cada vez mais firma-se a ideia de que o inimigo há de ser destruído. Na política formal, o discurso se atém à direita, cada vez mais assentada no poder. Na extra-oficial, abunda dos dois lados - atirando até em "aliados" que sairam da linha.