terça-feira, 17 de novembro de 2015

Não, o inimigo de meu inimigo não é meu amigo

Os eventos recorrentes no Oriente Médio e sua repercussão nos últimos dias revelam a prevalência de um dos mais preocupantes adágios populares: “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”. Em sua sana por sentido, retribuição ou “justiça”, formadores de opinião e leigos se mostram muito dispostos a relevar quaisquer ações condenáveis para encaixar seus atores como os “heróis” de sua narrativa.

Não é de hoje que essa mentalidade tem marcado a política internacional e as relações sociais. É um tema recorrente, no “cidadão de bem” que apoia a ação de justiceiros e ignora seus crimes, aos governos ao redor do mundo que financiam terroristas para fazer o que eles não podem, passando por nosso legislativo e nossos revoltados que apoiam um corrupto “seu” para derrubar “a corrupção”.

Algumas vezes a motivação tem toques de pragmatismo: durante a ascensão do nazismo, o então primeiro ministro da Inglaterra, Neville Chamberlain adotou uma política de apaziguamento em relação a Alemanha. Os crimes nazistas eram uma questão “menor” contanto que eles contivessem “as hordas comunistas”. Seu sucessor, Winston Churchill, fez o oposto, se aliando temporariamente aos “vermelhos” para enfrentar Hitler. É inegável, no entanto, que Chamberlain simpatizava com Hitler. Ou que Churchill não via problemas em quebrar a aliança assim que Hitler caísse.

Durante a guerra fria, os EUA e a Rússia financiaram guerrilheiros e combatentes para travar, nos Estados “não alinhados” a guerra ideológica que não podiam travar abertamente. As tentativas dos dois de controlar o Irã resultaram na revolução iraniana, a primeira das teocracias fundamentalistas islâmicas.

Para combater o Irã, os EUA armaram Saddam Hussein - que depois se tornou seu inimigo ao invadir o Kuwait. No Afeganistão, os Talibãs foram a “peça chave” para derrubar os soviéticos e imediatamente se viraram contra seus tutores.

Por sua vez, a União Soviética armou e treinou tiranetes como Pol Pot e a dinastia Kim, que a moda de Stalin rapidamente trataram de reescrever sua história em uma narrativa sem a ajuda soviética.

Na América do Sul e na África, as consequências dos golpes de estado e das milícias criadas pelas duas potências perdura até hoje - e poucos destes grupos serviram os papéis designados por seus treinadores.

Estes casos, assim como o supracitado financiamento a terroristas e guerrilheiros (recurso tão velho quanto a própria noção de relações internacionais) são manifestações cruéis e claras da Realpolitik, sem o verniz idealista do discurso público. Mais preocupada com as implicações reais da política do que a construção ideológica, a Realpolitik é um jogo complexo e sujo, que pede ocasionais alianças com quem tem inimigos em comum - e essas alianças não raro resultam em problemas graves para administrações futuras.

Hoje, a União Européia e os EUA têm como “aliado” a Arábia Saudita ,tão autoritária, violenta e anti-ocidente quanto o Estado Islâmico, mas de valor estratégico. A incoerência faz parte do jogo. Infelizmente.

Essa Realpolitik desconcertante se viu durante a Primavera Árabe e nas guerras do Iraque e do Afeganistão  - quando potências ocidentais armaram rebeldes, senhores da guerra e milícias não alinhadas com seus interesses para derrubar um “inimigo em comum”.

De parte deste plano surgiu o atual Estado Islâmico.  Que por sua vez foi respondido com novas alianças “de necessidade”, com grupos antes considerados terroristas - como a PKK curda e a Frente Islâmica da Síria.

Mas outros casos, mais preocupantes, advém de um idealismo torto. Movidos por distorções ideológicas, tecem uma nova narrativa onde o inimigo de seu inimigo é seu amigo não por “política”, mas por “ser heroico”.

É o caso de quem defende a ditadura por “ter combatido os comunistas”, de quem defende abusos da polícia por que “ela mata bandido”, e de quem defende incondicionalmente as ações militares no Oriente Médio “por matarem terrorista”. Ou de quem exalta a os movimentos de extrema direita em ascensão na Europa por “combaterem o terrorismo”. O conservadorismo sempre foi afeito a louvar as defesas violentas do status quo.

Mas é também o discurso de uma parcela não negligenciável da esquerda. Em sua oposição (justificada) ao imperialismo e a hegemonia americana, alguns pensadores e simpatizantes da esquerda veem em qualquer inimigo dos EUA um herói contra o imperialismo, vítima de calúnia e perseguição. O professor de jornalismo Kevin Williams nota que em tempos de guerra, o jornalismo as vezes aje como se houvesse algo “mais importante que a verdade”. Essa mentalidade parece ter contaminado os opinadores de esquerda, especialmente nessa era de comunicação instantânea.

Assim, criam obras fantásticas de revisionismo histórico: O Japão imperial passa a pobre vitima “da sede de sangue” Americana. A Al Qaeda passa de uma milícia teocrática para “uma revolta contra o imperialismo”. Slobodan Milosevic deixa de ser um genocida corrupto que coordenou uma limpeza étnica no Kosovo para ser um “nacionalista punido por resistir aos opressores”. Ghadaffi e Assad tiveram seu histórico de repressão apagado em prol de uma narrativa de “resistência heróica”, que minimiza os protestos e a insurgencia que tomou a Líbia e a Síria como sendo “mercenários ocidentais”. O complexo caos da Ucrania, marcado por anseios de poder e corrupção por agentes ocidentais e russos vira uma trama maniqueísta onde a heróica Rússia “garante a autodeterminação dos povos” contra a tirania do ocidente.

Putin talvez seja o melhor exemplo desta mentalidade entre a esquerda. O ex-agente KGB ligado às oligarquias conservadoras da Rússia jamais escondeu sua tara militarista. Mas suas intervenções na Estônia, na Ossétia, na Ucrânia e na Geórgia,  ao invés de criticadas, foram aplaudidas ou ignoradas pelos mesmos que condenavam os EUA por suas intervenções militares. Apesar do seu governo ser autoritário, expansionista, reacionário e extremamente homofóbico - progressivamente cerceando os direitos de lgbts no país - Putin é visto por muitos como um herói progressista, somente e tão somente por sua oposição aos EUA. De sua própria política externa violenta e imperialista, nada é dito.

E agora, em reposta aos eventos em Paris, há quem tente reescrever a narrativa do Estado Islâmico como “a fúria dos povos oprimidos”. O estupro sistemático,  a homofobia violenta, o ódio teocrático, as execuções e o culto apocalíptico - tudo isto é jogado sob o tapete para pintar a situação como um caso simples de “oprimidos se virando contra a tirania do ocidente”. Na melhor das intenções, fantasiam um dos piores grupos da atualidade como heróis incompreendidos. Sem imaginar que seus heróis que “feriram o coração do imperialismo europeu” não hesitariam em fazer o mesmo contra eles. E ignorando que muito mais do que atacar “o imperialismo ocidental”, o EI foca sua tirania naqueles que essa parcela da esquerda julga defender: os já violentados cidadãos do Oriente Médio.

O inimigo do meu inimigo raramente é meu amigo. É só o inimigo do meu inimigo. E pode muito bem ser dos males o pior. Da direita reacionária, movida primariamente a emoção, não se deve esperar muito diferente. Mas do resto do debate político, na direita e na esquerda, especialmente de quem diz defender direitos humanos, a verdade tem de vir antes. Não aquilo que mais “interessa” a sua narrativa de bem e mal, certo e errado. Não dá para defender ou se aliar com terroristas por conveniência, ou por que eles validam nossos vieses. Ou que se admita o apoio junto com o que está apoiando - não a versão sanitária do que apoia.

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