terça-feira, 25 de março de 2014

A ameaça pífia da marcha da vergonha

Em prol do autoritarismo, do obscurantismo e uma mentalidade
datando da guerra fria. 
Depois de muita bravata, peito estufado e "patriotismo" fingido por parte de quem queria jogar o país de volta às sombras, tivemos de fato um momento histórico neste sábado, dia 22: o maior e mais cômico fiasco já visto em um "protesto" - e que ainda assim alguns ultra-conservadores tomaram como vitória: a reedição da infame "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" - que em 1964 serviu de base para o golpe militar que nos atou a 21 anos de autoritarismo - mal conseguiu em sua maior mobilização (em São Paulo) superar a marca de 500 pessoas. 

Em outras cidades, os números foram ainda mais risíveis: em Recife, foram seis; Em Florianópolis, apenas três. Em Joinville, 14, frustrados pelo contra-protesto de mais de 60; Porto Alegre, cerca de 40, entre eles neonazistas. Na capital carioca, cerca de 150. Estima-se que juntando todas as marchas - nome apropriado, vendo a tara pelo militarismo dos marchantes - tenham somado pouco mais de cinco mil pessoas. Clamando por um golpe "intervenção" militar "constitucional", a patotinha conservadora aproveitou o fim de semana para clamar contra o comunismo, contra "ditadura do PT", pela pena de morte, em prol da tortura, Bolsonaro para presidente, e outros memes velhos da direita brasileira. 

Constituição não apoia manifestantes...
Antes de qualquer coisa, a base da argumentação golpista é o artigo 142 da constituição, que na leitura deles - uma leitura que só pode ser de uma versão de Arret, a terra bizarra da DC - afirma que cabe as forças armadas tomar o poder se eu não gostar do governo o governo for de esquerda ilegítimo. Segue o artigo:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Alguém  consegue ver nesse artigo algum ponto falando em intervenção militar? Que as forças armadas tem poder de derrubar presidentes? Esquecem-se que a comandante maior das forças armadas ainda é - e até que deixe o cargo, vai continuar sendo - a presidente da República, Dilma Roussef? A tara por golpe é tamanha que conseguem ler algo que não está lá - não surpreendente vindo de quem crê piamente que o governo PTista é totalitarista. 

Para não mencionar a questão do temor constante da "ameaça comunista" - expresso de formas violentas nas redes sociais,  num misto de esquizofrenia paranoide e ódio concentrado, visto igualmente durante as marchas, demonstrando que essas pessoas ainda não saíram da mentalidade da guerra fria; Afinal, são pessoas que ainda leem, por exemplo, a questão Ucrânia como "comunismoXcapitalismo", ignorando plenamente que a Rússia não é mais comunista desde os anos 90 (e que se aproxima muito mais da sociedade ideal da direita conservadora do que os EUA).


Manifestante em Porto Alegre faz saudação fascista;
jornalistas e cartunista foram ameaçados.
E a mentalidade de guerra foi o que marcou a marcha da vergonha; em São Paulo, dois manifestantes se engalfinharam por divergências de opinião, a polícia teve que resgatar um transeunte agredido por usar uma camisa do PT, e um aposentado foi expulso da marcha, sob os gritos de "comunista", por usar calça e tênis vermelhos; no Rio, a marcha terminou em confronto com um contra protesto - durante o qual um adepto do "filósofo" Olavo de Carvalho fez uma demonstração pública de idiotice - a ignorância combinada com orgulho - berrando "Eu tenho cultura, você não! Você é burro, eu sou inteligente!". Em Porto Alegre, membros da marcha fizeram saudações nazistas e ameaçaram o cartunista Carlos Latuff - e estas são as pessoas que se dizem cidadãos de bem, preocupadas com "o futuro do país". 


Citando o professor e jornalista Gleber Pieniz, temos também a maneira que o aparato policial lidou com os golpistas e com os manifestantes de fato em prol da democracia: protegendo os primeiros e reprimindo os últimos: 
"Seria apenas curioso se não fosse triste: enquanto uma minoria clamava por novo golpe e incitava a tomada do estado pela força militar, a sempre equivocada polícia tratava a maioria de estudantes e trabalhadores como se fossem criminosos. Havia, nitidamente, mais policiais, viaturas, cavalos, cacetetes, pistolas e espingardas do que "patriotas" em marcha. Todo o aparato repressivo deu atenção exclusiva à maioria, impedindo a livre circulação e registro, exigindo documentos e ameaçando de prisão quem desacatasse qualquer ordem arbitrária".
Ira preocupante. 
 O resultado risível é ainda assim preocupante - o grau de fanatismo de alguns dos organizadores da marcha é tamanho, que estão cantando vitória e "a morte do PTismo" após uma demonstração tão pífia. E são pessoas de tal "integridade moral" e honestidade intelectual cuja reação ao fiasco foi composta por ameaças de violência, alegações de "mídia vendida", e que esse é só "o primeiro disparo em uma guerra". Coisas assustadoras - e que é de se esperar que sejam apenas espasmos de morte de uma mentalidade em estado terminal. Já demonstraram ser uma minoria pífia e patética; só falta reconhecerem sua insignificância. 


Sabendo que não tem chance nas urnas, o pedido é por
golpe "intervenção. 
Essa tara golpista tem uma explicação simples: eles sabem que nas urnas, mesmo com as numerosas falhas do governo Dilma - e não são poucas - eles não ganham. Por isso, apelam para a ameaça golpista, já que o plano B - cercear o voto de quem votaria no PT - não funcionará, a unica solução que os resta é derrubar o PT a força. O que não acontecerá. Que fique registrada a cara suja e patética dessa gente que prefere a ditadura à reconhecer o resultado das eleições. 

O pior que é até as eleições, a insanidade dessa gente vai só crescer - e quando perderem, vão usar o mesmo batido argumento: "ninguém que eu conheço votou no -insirapartidoaqui-, a eleição foi roubada". Triste. E assustador.

E para quem não sabe...a  marcha golpista é na verdade crime; se o PT fosse tão autoritário, os marchantes estariam agora atrás das grades. É surpreendente que pessoas com uma tara legalista tão grande quanto esses "cidadãos preocupados" não tenha ciência disso - mas por outro lado, eles inventaram uma interpretação nova de um artigo da constituição. Segue os artigos 22 e 23 da lei 7170 de 14 de dezembro de 1983, ainda em vigor: 

Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:
I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;
II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa;
III - de guerra;
IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.
§ 1º - A pena é aumentada de um terço quando a propaganda for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão.
§ 2º - Sujeita-se à mesma pena quem distribui ou redistribui:
a) fundos destinados a realizar a propaganda de que trata este artigo;
b) ostensiva ou clandestinamente boletins ou panfletos contendo a mesma propaganda.
§ 3º - Não constitui propaganda criminosa a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas.
Art. 23 - Incitar:
I - à subversão da ordem política ou social;
II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições
civis;
III - à luta com violência entre as classes sociais;
IV - à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.


Fico no aguardo para que os "defensores da lei constitucional" se entreguem as autoridades competentes. E é engraçado como aqueles que clamam que o governo é autoritário e exercitam a sua obsessão golpista jamais são punidos, mesmo tendo legislação perfeitamente compreensível que puna tais crimes; enquanto a direita Brasileira chama Dilma de totalitarista, e a direita americana chama Obama de ditador... eu digo que o problema interno deles é simples: falta espinha e tenta-se apaziguar a oposição. São como Neville Chamberlain lidando com Hitler: se fizermos tudo o que eles querem e não repreendermos os crimes deles, eles nos deixarão em paz, certo?

Querem expressar insatisfação com o governo em si? Façam isso nas urnas. Se tem alguma pauta específica, que façam seus protestos - mas se sua pauta é "eu não gosto do PT e não vou aceitar isso, golpe agora", lamento, mas além de fazer um protesto ilegítimo, estúpido, arrogante e autoritário... você é criminoso. Eu espero que depois dessa cresçam, e que aceitem o resultado das urnas - seja ele qual for.

E não, não vai dar Bolsonaro. 

quarta-feira, 5 de março de 2014

Por sua opinião, nós lhe mandaremos a Crimeia

Na manhã desta terça-feira, Abby Martin, âncora do canal de TV RT, saiu um pouco do script na sua cobertura da crise Ucraniana. Antes de encerrar a transmissão do seu programa, Breaking the Set, ela expressou sua insatisfação com as ações do governo russo, no que ela chamou explicitamente de "ocupação militar". 

Eis o discurso de Martin:

“Antes que eu encerre o programa, eu queria dizer algo do meu coração sobre a atual crise política na Ucrânia, e a ocupação russa da Crimeia. Só porque eu trabalho aqui, na RT, não quer dizer que eu não tenha independência editorial. E eu não posso dizer o bastante o quanto eu sou contra qualquer intervenção militar nos afazeres de nações soberanas. O que a Russia fez é errado. 
Eu admito que não sei o quanto deveria sobre a história da Ucrânia ou as dinâmicas culturais da região. Mas o que eu sei é que intervenção militar nunca é a resposta. E eu não vou sentar aqui e fazer apologia ou defender agressão militar. Tudo que podemos fazer agora é esperar por um resultado pacífico para uma situação terrível, e prevenir outra Guerra Fria entre múltiplas superpotências. Até lá, eu continuarei a contar a verdade como eu a vejo. 
Só um problema para o lado da jornalista, e um que é um velho conhecido de muitos profissionais na área:  ao fazer isso ela foi contra os interesses dos chefes. E quem são os chefes? Neste caso, o governo russo. A reação que se seguiu pode ter vindo por ordem do Kremlin, ou pode ter sido da emissora, não se sabe, mas... Como "recompensa" pela audácia de dizer o que pensa, Martin recebeu uma "proposta" ousada: ser enviada para conhecer a realidade da situação do "epicentro da estória". 

Como declarou a emissora: 
Contrariando a opinião popular, RT não espanca seus jornalistas até a submissão, e eles estão livres para expressarem suas próprias opiniões, não só particularmente, como no ar. Esse é o caso do comentário de Abby quanto a Ucrânia.
Nós respeitamos as visões dela, e as visões de todos nossos jornalistas, apresentadores e anfitriões de nossos programas,  e não haverá nenhuma reprimenda contra a senhorita Martin. 
Em seus comentários, a senhorita Martin também notou que ela não possui conhecimento profundo da realidade da situação na Crimeia. Portanto, nós mandaremos ela para a Crimeia para dá-la a oportunidade de formar sua opinião do epicentro da estória. 
Por um lado, essa é uma ótima proposta para um jornalista, especialmente alguém com um foco voltado para política internacional - mas no contexto do evento, isso foi mais um caso de "você pode expressar sua opinião, da linha de frente".  Martin recusou o convite - que fim essa história vai ter, ainda não se sabe; ela pode ser pressionada a ir para a Crimeia, ou quando chegar a época de renovar o contrato, ela pode ser despedida. Uma triste realidade.


E que não é exclusividade da RT, ou de jornais mantidos por estados. Em 2003, a então repórter da MSNBC, Ashleigh Banfield criticou a cobertura dada a guerra do Iraque, e o comportamento de certos apresentadores "patrióticos", durante uma palestra na Kansas State University. A opinião não agradou a Universal - e em resposta, por dez meses Banfield ficou sem um escritório na emissora. Quando recebeu um escritório novo,  este era  um armário. E durante dezessete meses, Banfield esteve presa a um contrato que não poderia largar, proibida contratualmente de procurar outro emprego. Não é a única, e a tática de "segurar" desafetos nas redações (quando estes tem nome demais para serem sumariamente demitidos) para que não vão até o concorrente é bem comum. 

Por si só, o caso de Abby Martin já é polêmico. Como parte do cenário maior (e com literatura farta - indicações ao fim do texto!), é representativo de como a pauta dos jornais, rádios e televisões está sujeita a interferência dos patrocinadores. Quem trabalhou na área sabe: quantas pautas não foram barradas pois não se enquadravam "no projeto editorial"? Quantas outras não entram porque é interesse dos patrocinadores? Jornalismo é um jogo de interesses. Seja mantido por estados, empresas ou ONGs, sempre há interesses - políticos, econômicos ou ideológicos - por trás de qualquer cobertura jornalística. As vezes abertamente, outras na surdina, e em alguns casos a interferência é maior - como o da RT, mantida por um estado bem autoritário. 

E os colegas de imprensa... alguém se dispõe a contar casos em que isso foi claro, que algo não entrou porque "não é o enquadramento que cabe a esse jornal"?

Para conhecer mais sobre essas relações:

Dunaway, J. (2013). Media Ownership and Story Tone in Campaign News. American Politics Research 41(1):24-53.  

McChesney, R. (2003). The Problem of Journalism: A Political Economic Contribution to an Explanation of the Crisis in Contemporary US Journalism. Journalism Studies 4(3):299-329.  

 Upshaw, J.; Chernov, G. and Koranda, D. (2007). Telling More than News: Commercial Influence in Local Television Stations. Electronic News 1(2):67-87.  

Stetka, V. (2012). From Multinationals to Business Tycoons: Media Ownership and Journalistic Autonomy in Central and Eastern Europe. The International Journal of Press/Politics. 17(4):433-456

Storr, J. (2013). Carribean Journalism’s Media Economy: Advancing Democracy and the Common Good? The International Communication Gazette.