domingo, 22 de dezembro de 2013

Rico demais para consequências?

Quatro mortes. A sentença: rehabilitação, porque ele foi
levado pelos pais a entender que era
"rico demais para lidar com as consequências"
Em 15 de junho deste ano, Ethan Couch, um jovem de 16 anos de Keller, Texas, saiu um pouquinho da linha: Junto com sete amigos, Couch roubou um engradado de cerveja de uma loja Walmart, e com um nível de alcóol no sangue de 0.24 (o triplo do legal no Texas, um dos mais lenientes estados americanos), partiu pela estrada no condado de Tarrant. À 110km/h em uma estrada cujo limite era de 65km/h, e em uma pesada Ford F-350, a "aventura" do jovem texano teve um fim prevísivel: a morte.

Não, não a dele, infelizmente: A beira da estrada estava o carro da cozinheira Breanna Mitchell (24 anos), cujo pneu havia furado. Mitchell recebia assistência de três moradores locais, Hollie Boyle, Shelbie Boyle e Brian Jennings quando Couch perdeu o controle e iniciou uma série de colisões que matou os quatro e feriu outros sete. O acidente, mais um entre tantos deste tipo; o que torna o caso notável é o desfecho. 



Julgado no início deste mês, Couch foi sentenciado a dez anos de liberdade condicional, juntamente com reabilitação, mesmo com quatro acusações de homícidio por embriaguez - que deveria resultar em uma sentença de até 20 anos de prisão. O motivo de tal leniência? Segundo sua defesa, o rapaz era incapaz de associar suas ações com as consequências devido a "affluenza": sua família seria tão rica, mas tão rica, que o jovem não seria capaz de responder por seus atos, pois seus pais haviam lhe incutido a ideia de que dinheiro compra privilégios. 
Segundo o psicólogo chamado pela defesa, Dick Miller:
Prior to sentencing, a psychologist called by the defense, Dr. G. Dick Miller, testified that [Ethan] Couch's life could be salvaged with one to two years' treatment and no contact with his parents. ... Miller said Couch's parents gave him "freedoms no young person should have." He called Couch a product of "affluenza," where his family felt that wealth bought privilege and there was no rational link between behavior and consequences. 
He said Couch got whatever he wanted. As an example, Miller said Couch's parents gave no punishment after police ticketed the then-15-year-old when he was found in a parked pickup with a passed out, undressed, 14-year-old girl. Miller also pointed out that Couch was allowed to drive at age 13. He said the teen was emotionally flat and needed years of therapy.  
Ou colocando em termos simples, Couch era rico demais para ser culpado. Não irei me alongar na incoerêcia dessa sentença. Não há como justificar responder a essa criação doentia dando privilégios e imunizando a consequências. Miller também alegou que seria uma injustiça com o jovem condená-lo a prisão, ou a um centro de detenção juvenil apesar da severidade do crime. Segundo o psicólogo, o rapaz veio de um "sistema doente" e não lhe faria bem "colocar em outro sistema doente". Então mantenhamos ele no sistema doente, não? Continuem sem levar em conta as consequências dos atos dele, ao que parece.

Certamente não se veria tal leniência da juíza responsável pelo caso se Couch fosse de uma família pobre e tivesse sido incutido com a ideia de que se dirige bêbado; ou se ele viesse de um lar abusivo, onde a violência é "a solução" para todos os problemas, e tivesse agredido alguém; então porque deveria ser efetivamente perdoado por homícidio por ser rico demais para aprender?

A "punição" não poderia ser mais patética - e mais lamentavelmente comum. Couch não é o primeiro filhinho de papai a escapar da justiça por ter um pai rico e "bom histórico familiar": é só o primeiro em que isso é assim descarado. E não é uma exclusividade dos EUA, ou de menores infratores - casos assim abundam pelo mundo, e alguns até viram filme, pintando seus ricos criminosos como pobres vítimas do luxo em que foram criados... enquanto aqueles que imigrantes, minorias e excluídos são tratados como culpados e perversos - mesmo sem terem cometido crime algum.

A respeito do caso, o editor do Dallas Morning News, Mike Hashimoto teve o seguinte a dizer: "Apesar de toda a morte que deixou, Ethan Couch não aprendeu nada que ele já não soubesse: é muito melhor vir daquele lugar rico onde essas consequências sujas não importam; isso é para outra gente". Alguém tem alguma dúvida que Couch vai continuar dirigindo bêbado após essa? E agora todos os outros filhinhos de papai, depois dessa defesa bem sucedida, tem mais um caminho de escape: "Eu sou rico demais, meus pais não me ensinaram que era errado, me deixa ir". E novamente, matar alguém com um carro é tratado como algo menor.



Por último, uma demonstração de onde a falta de consequências para quem é rico chega: Ano passado um banqueiro esfaqueou um taxista. Porque podia. Porque sabia que iria se safar. E se safou - foi processado, mas não punido. Pois era grande demais para cair. 




terça-feira, 19 de novembro de 2013

Países Ricos se inspiram no Bolsa Família, diz New York Times.

Criticado no Brasil, Bolsa Família serve de exemplo no
exterior, diz New York Times.

Do editor de Paradoxos de Nosso Tempo: Enquanto a direita brasileira, alguns centristas e uma parcela pequena da esquerda insistem em desmerecer programas como bolsa família ao chamá-los de "bolsa esmola", "bolsa vagabundo", alegarem que estimula o desemprego, etc, no exterior o programa tem sido cada vez mais debatido - e de forma positiva. Como demonstra a reportagem do New York Times e o comentário de Luciano Martins Costa, o Bolsa Família está longe de ser um fracasso. E caso um programa básico de welfare, como o bolsa família - cujos rendimentos são pífios, não podendo ultrapassar R$ 306, para uma família com 5 crianças ou gestantes, e mais 2 ou mais adolescentes de 16 ou 17 anos, - fosse gerar uma onda de desemprego voluntário e famílias tendo filhos para receber mais benefício (o pesadelo conservador frente ao programa) que horror causaria a renda básica de R$ 6.348 proposta pelo governo suíço? Estaria a suíça a criar uma massa de vagabundos? Creio eu que não.
Abaixo segue o texto de Luciano Martins Costa, como publicado no Observatório da Imprensa e no Pragmatismo Político. 

Pedro Leal. 

A notícia, publicada na edição de sexta-feira (15/11) do Estado de S. Paulo, é a versão traduzida de um texto da jornalista especializada em política econômica Annie Lowrey, que escreve no New York Times.

Na linha fina que sustenta o título, o jornal afirma: “Programas assistenciais tipo Bolsa Família são cada vez mais debatidos em todo o mundo”. A seguir, relatos de experiências desse tipo feitas em países ricos e opiniões de economistas sobre os resultados dessas ações sociais.

Agora, sugerimos que o prezado leitor e a leitora atenta tentem se recordar de como a imprensa brasileira tratou, desde o início, os programas sociais de distribuição de renda adotados pelo governo do ex-presidente Lula da Silva. Expressões como “bolsa-esmola” e “incentivo para a vagabundagem” ainda podem ser apreciadas em artigos e reportagens publicados a partir de 2003, quando a prática de combater a miséria com a concessão de renda virou política pública.

Depois de passar anos condenando o programa, a imprensa se convenceu de seus resultados e passou a cobrar uma “porta de saída” para os beneficiários e “adequações” do sistema. Ainda no ano passado, o Globo publicava ampla reportagem na qual fazia uma avaliação dos benefícios da injeção de dinheiro nas famílias pobres, reconhecendo como efeitos colaterais alguns dos resultados previstos ainda no lançamento do projeto: drástica redução do trabalho infantil, aumento da escolaridade nas regiões beneficiadas, diminuição da violência familiar e novo protagonismo da mulher.

Ao cobrar “aperfeiçoamentos”, o jornal citava o caso de uma faxineira, do Piauí, que rejeitou um emprego de babá porque preferia continuar com seus próprio filhos, sustentada pelo dinheiro do governo. O Globo apresentava essa história como crítica ao programa, como exemplo de que em alguns casos os beneficiários prefeririam não trabalhar fora, com medo de perder a renda mínima.

E é justamente nesse ponto que se revela a miopia social da imprensa brasileira: ao escolher ficar com seus próprios filhos, a mulher citada na reportagem estava justamente realizando o propósito do projeto social, ou seja, procurava assegurar com sua presença que os filhos fossem à escola. Se fosse cuidar dos filhos da patroa, certamente ganharia mais dinheiro, mas quem cuidaria de suas próprias crianças?

Pobres países ricos

A reportagem do New York Times, reproduzida pelo Estado de S. Paulo, observa que a crise nos países ricos está estimulando debates sobre a ideia de prover uma renda básica para famílias em dificuldades, principalmente para os jovens que não encontram emprego (ver aqui o texto original em inglês).

O caso da Suíça é emblemático: lá, uma campanha defende a concessão de um cheque mensal de 2.500 francos suíços – o equivalente a R$ 6.348 – a cada cidadão, rico ou pobre, idoso ou jovem, esteja ou não empregado. Como resultado imediato, a pobreza desapareceria completamente. A proposta é de um artista nascido na Alemanha, mas, segundo o texto, está mobilizando a sociedade e provoca grande debate entre economistas.

Mesmo nos Estados Unidos, pátria do liberalismo econômico, a discussão mobiliza as forças políticas de todos os matizes, mas praticamente já não se questiona a conveniência de programas de assistência: a controvérsia gira em torno do modelo mais adequado, se a renda básica será proporcionada por um programa de seguridade social expandido ou pela simples entrega de dinheiro, sem nenhuma obrigação em troca. Daí a uma ação internacional para o resgate da África, por exemplo, o caminho fica mais curto.

Uma pesquisa feita no Canadá e citada pelo jornal observa que a experiência de doação pura e simples de um salário mínimo a todos os cidadãos de uma pequena cidade durante um curto período conseguiu eliminar a pobreza, os índices de conclusão do ensino médio subiram e o número de pessoas hospitalizadas, caiu. O estudo projeta resultados mais amplos, demonstrando que uma política de renda básica não produz uma sociedade ociosa, como diziam os jornais brasileiros.

Programas de incentivo à base de transferência de renda vinham sendo experimentados no Brasil desde 1994, em Campinas, e acoplados a planos de educação, como aconteceu em 1995 em Brasília, durante o governo do hoje senador Cristovam Buarque. Mas foi o ex-presidente Lula da Silva que transformou essa ideia em política nacional, sob o nome de Bolsa-Família.

A reação da imprensa foi o que se viu.

Passados dez anos, o Brasil produziu o fenômeno da mobilidade social, milhões de cidadãos foram resgatados da miséria, muitos celebram o ingresso de seus filhos na universidade, os pobres aprenderam o que é autoestima, e países ricos pensam em aplicar a mesma receita para reduzir os danos do capitalismo especulativo.

Agora os jornais brasileiros não falam mais em “bolsa-esmola”. É que deu no New York Times.
Luciano Martins Costa, Observatório da Imprensa

10 Filmes para se pensar a consciência negra.

Besouro. Captura de Imagem do Filme. 

Filmes não são só entretenimento; como qualquer forma de discurso, narrativa ou história, transmitem ideologia e trazem uma reflexão acerca da realidade que vai muitas vezes além do que pode se ter no conforto do lar. Da mesma maneira que são úteis para escapismo ingênuo, para reproduzir o discurso dominante e para manter o status quo, o cinema pode servir para se repensar a realidade. E o Mundo Negro, junto ao Pragmatismo Político, compilou essa ótima lista de filmes para se refletir a cerca de uma situação muito problemática: a do negro no Brasil e no Mundo. 

Fonte: Pragmatismo político, a partir de Mundo Negro, com informações da Biblioteca da Universidade Federal de São Paulo

Além dos livros, filmes são uma ótima maneira de saber mais sobre História. Nesta semana da consciência negra, confira 10 filmes que te farão refletir sobre a situação dos negros no Brasil e no mundo.

1.Faça a Coisa Certa (Spike Lee – 1989)
Sal (Danny Aiello), um ítalo-americano, é dono de uma pizzaria em Bedford-Stuyvesant, Brooklyn. Com predominância de negros e latinos, é uma das áreas mais pobres de Nova York. Ele é um cara boa praça, que comanda a pizzaria juntamente com Vito (Richard Edson) e Pino (John Turturro), seus filhos, além de ser ajudado por Mookie (Spike Lee). Sal decora seu estabelecimento com fotografias de ídolos ítalo-americanos dos esportes e do cinema, o que desagrada sua freguesia. No dia mais quente do ano, Buggin’ Out (Giancarlo Esposito), o ativista local, vai até lá para comer uma fatia de pizza e reclama por não existirem negros na “Parede da Fama”. Este incidente trivial é o ponto de partida para um efeito dominó, que não terminará bem.

2. Conduzindo Miss Daisy (Bruce Beresford – 1989)

Atlanta, 1948; Uma rica judia de 72 anos (Jessica Tandy) joga acidentalmente seu Packard novo em folha no jardim premiado do seu vizinho. O filho (Dan Aykroyd) dela tenta convencê-la de que seria o ideal ela ter um motorista, mas ela resiste a esta idéia. Mesmo assim o filho contrata um afro-americano (Morgan Freeman) como motorista. Inicialmente ela recusa ser conduzida por este novo empregado, mas gradativamente ele quebra as barreiras sociais, culturais e raciais que existem entre eles, crescendo entre os dois uma amizade que atravessaria duas décadas.

3. A Outra História Americana (Tony Kaye – 1998)

Um dos melhores filmes sobre o tema racial da década de 1990, não poupa o espectador da violência e do ódio ao mostrar os crimes de uma gangue racista de skin heads, formada por integrantes neonazistas, nos Estados Unidos. O filme tem o poder de mostrar como o ódio racial acaba com a vida tanto de agressores quanto de agredidos, e é contundente, principalmente pela mensagem e pela ótima interpretação de Edward Norton.

4. Amistad (Steven Spielberg – 1998)



Baseado em um evento real, este filme relata a incrível história de um grupo de escravos africanos que se rebela e se apodera do controle do navio que os transporta e tenta retornar à sua terra de origem. Quando o navio, La Amistad, é aprisionado, esses escravos são levados para os Estados Unidos, onde são acusados de assassinato e são jogados em uma prisão à espera do seu destino.Uma empolgante batalha se inicia, o que capta o interesse de toda a nação e confronta os alicerces do sistema judiciário norte-americano. Entretanto, para os homens e mulheres sendo julgados, trata-se simplesmente de uma luta pelos diretos básicos de toda a humanidade: a liberdade.

5. A Negação do Brasil (Joel Zito Araújo – 2001)

O documentário é uma viagem na história da telenovela no Brasil e particularmente uma análise do papel nelas atribuído aos atores negros, que sempre representam personagens mais estereotipados e negativos. Baseado em suas memórias e em fortes evidências de pesquisas, o diretor aponta as influências das telenovelas nos processos de identidade étnica dos afro-brasileiros e faz um manifesto pela incorporação positiva do negro nas imagens televisivas do país.

6. Quanto Vale Ou É Por Quilo? (Sergio Bianchi – 2005)
Adaptação livre do diretor Sérgio Bianchi para o conto “Pai contra Mãe”, de Machado de Assis, Quanto Vale ou É Por Quilo? desenha um painel de duas épocas aparentemente distintas, mas, no fundo, semelhantes na manutenção de uma perversa dinâmica sócio-econômica, embalada pela corrupção impune, pela violência e pelas enormes diferenças sociais. No século XVIII, época da escravidão explícita, os capitães do mato caçavam negros para vendê-los aos senhores de terra com um único objetivo: o lucro. Nos dias atuais, o chamado Terceiro Setor explora a miséria, preenchendo a ausência do Estado em atividades assistenciais, que na verdade também são fontes de muito lucro. Com humor afinado e um elenco poucas vezes reunido pelo cinema nacional, Quanto Vale ou É Por Quilo? mostra que o tempo passa e nada muda. O Brasil é um país em permanente crise de valores.

7. Agosto Negro (Samm Styles – 2007)

A curta vida do ativista condenado George Lester Jackson (Gary Dourdan, da série CSI) se torna o estopim para uma revolução, dando início a mais sangrenta rebelião ocorrida em toda a história do presídio de San Quentin. Agosto Negro narra a jornada espiritual e a violenta fé de Jackson, desde sua condenação por roubar 71 dólares de um posto de gasolina até galvanizar a Família Black Guerrilla com seu incendiário livro, criado a partir de cartas, Soledad Brother, ou espalhar ferocidade nos corredores de San Quentin em um dia de agosto, quando seu irmão mais novo, Jonathan, chocou o país ao fazer refém toda uma corte de justiça na Califórnia, em protesto pelo julgamento de Jackson. Para o militante George Jackson, a revolução não era uma escolha, mas uma necessidade.

8. Besouro (João Daniel Tikhomiroff – 2010)

Bahia, década de 20. No interior os negros continuavam sendo tratados como escravos, apesar da abolição da escravatura ter ocorrido décadas antes. Entre eles está Manoel (Aílton Carmo), que quando criança foi apresentado à capoeira pelo Mestre Alípio (Macalé). O tutor tentou ensiná-lo não apenas os golpes da capoeira, mas também as virtudes da concentração e da justiça. A escolha pelo nome Besouro foi devido à identificação que Manuel teve com o inseto, que segundo suas características não deveria voar. Ao crescer Besouro recebe a função de defender seu povo, combatendo a opressão e o preconceito existentes.

9. Bróder (Jeferson De – 2011)
Capão Redondo, bairro de São Paulo. Macu (Caio Blat), Jaiminho (Jonathan Haagensen) e Pibe (Sílvio Guindane) são amigos desde a infância e seguiram caminhos distintos ao crescer. Jaiminho tornou-se jogador de futebol, alcançando a fama. Pibe vive com Cláudia e tem um filho com ela, precisando trabalhar muito para pagar as contas de casa. Já Macu entrou para o mundo do crime e está envolvido com os preparativos de um sequestro. Uma festa surpresa organizada por dona Sonia (Cássia Kiss), mãe de Macu, faz com que os três amigos se reencontrem. Em meio à alegria pelo reencontro, a sombra do mundo do crime ameaça a amizade do trio.

10. Histórias Cruzadas (Tate Taylor – 2012)

Jackson, pequena cidade no estado do Mississipi, anos 60. Skeeter (Emma Stone) é uma garota da sociedade que retorna determinada a se tornar escritora. Ela começa a entrevistar as mulheres negras da cidade, que deixaram suas vidas para trabalhar na criação dos filhos da elite branca, da qual a própria Skeeter faz parte. Aibileen Clark (Viola Davis), a emprega da melhor amiga de Skeeter, é a primeira a conceder uma entrevista, o que desagrada a sociedade como um todo.Apesar das críticas, Skeeter e Aibileen continuam trabalhando juntas e, aos poucos, conseguem novas adesões.

"Senhorita Macho" e a representação feminina.


Não, hoje eu não vou postar um artigo gigante. Ao invés disso, vou deixar outra pessoa falar por mim: Esse é um dos vídeos produzidos pela vlogueira e professora feminista Anita Sarkeesian, a respeito de representação feminina em videogames. Não vou discorrer sobre a professora Sakeesian, alvo de uma série de ataques quando anunciou sua intenção de falar a respeito de games (situação que me rendeu um texto em outro blog) - e nos meses seguintes. 

O que vou complementar aqui é sobre a questão do que ela nomeia de "Ms. Male": como eu já havia discorrido no meu outro blog, em um post sobre a Iniciativa Hawkeye, é lamentavelmente comum que personagens femininas em quadrinhos sejam nada mais que "clone" de personagens masculinos; no cinema, protagonistas femininas que não sejam o herói de ação com peitos - e que estes não sejam a definição pura da "mascara neutra", aqui representada por '_' - são raras: protagonistas femininas são mais comuns em "chick flicks", embora heroínas de ação estejam se tornando mais comuns, estão também se tornando mais masculinas - e com frequência em filmes de ação, thrillers e dramas policiais, a tudo caí nas mãos de "um homem". Raros são os filmes que passam o teste bechdel - e isso trás seus muitos problemas. 

Outra coisa que quero complementar no que Sarkeesian está dizendo, é que não apenas se trata apenas do Ms Male: também temos o mesmo problema com etnicidade, países e orientação sexual; além de "personality female disorder", temos "personality black disorder", "personality asian disorder", "personality gay disorder", etc: para o padrão da mídia mainstream, o padrão é hetero-branco-homem-americano; todo o resto, é "especial", e já conta como personagem por existir, dispensando profundidade, personalidade e caracterização. E isso se reflete no público: quando anunciado que a próxima Miss Marvel seria a filha de imigrantes paquistaneses Kamala Khan, a reação incluiu ultrajes pelo "Politicamente correto", e piadas estereotipadas  dizendo que  ela "vestiria uma burqa" e teria o poder "de se explodir" - pois afinal, muçulmano é personalidade, não?

Vejam o vídeo, e depois comentem qualquer coisa.  

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Dirceu foi condenado. E o que vem agora?

Deixando de lado o debate quanto as dimensões do mensalão e a especulação quanto a participação no esquema de compra de votos, o fato é que José Dirceu e outros nove mensaleiros foram condenados. Após oito anos, saiu a tão exigida sentença... e agora? Um caso de corrupção - longe de ser, como afirma o meme, "o maior escândalo de corrupção da história do país" - foi levado a justiça. Mas não vejo o que comemorar. Não enquanto há tantos outros imbróglios ignorados. Quando o grosso da corrupção é deixado de lado.

Há aqueles que clamam que nossos bravos heróis togados, liderados por Joaquim Barbosa, estão pondo a casa em ordem e destruindo a corrupção no Brasil. Mas isso me parece ingênuo. No mínimo. A pena de 10 anos e 10 meses do líder petista é apenas uma detalhe ínfimo em um oceano de processos ignorados, que deveriam ser levados adiante. Mas não serão, tenho certeza. Nada vai mudar, e o que poderia servir de catapulta para mudanças de fato, será apenas motivo de comemoração de quem não entende nada além do que a mídia lhe passa.

Não veremos qualquer novidade quanto às suspeitas privatizações do governo FHC. E qualquer tentativa de discutir esse golpe bilionário em prol do capital estrangeiro ainda será respondida com "e o mensalão" e insultos "inteligentes" como "petralha" e "comuna".

Serão mantidas as queixas de que a comissão dedicada a investigar os crimes cometidos pelo governo militar não investiga os crimes da guerrilha - sem se tocar que A: tais crimes já foram investigados e B: o propósito da comissão é investigar os crimes do governo militar. E a "ditabranda" continuará a ser vista pelos reacionários como aquele tempo idílico que não havia crime, corrupção ou "imoralidade" - e a imprensa ser censurada nada tinha a ver com essas coisas não aparecerem.

Não vai haver qualquer grande e  midiático julgamento sobre as falcatruas nas concessões de transporte coletivo, ou dos roubos descomunais do metro de São Paulo. Alckmin pode ter virado piada pelo seu processo contra o Cartel de uma empresa só, mas não enfrentará uma década de escrutínio interminável por isso, não será tratado como o maior ladrão da história do país (embora o esquema da Siemens seja sete vezes maior que o mensalão, e ao contrário deste envolva dinheiro público), e logo logo será apenas uma nota de rodapé, enquanto continua-se a luta pelo impeachment de quem abandonou a presidência há três anos.

Tão pouco serão levadas a sério as denúncias contra aquele deputado PPista que chamou uma ministra de puta, mandou negros voltarem pro zoológico, e socou um senador. Ou aquele outro que diz que negros são amaldiçoados. Ou seu colega de bancada, que em defesa a um colega sendo julgado por estupro disse que "ninguém ali tinha o direito de julgar, por que todo mundo faz" (parafraseado).

Ao mesmo tempo, estes citados, todos "defensores da moral e bons costumes", vistos por alguns como ícones de ética e retidão, continuarão divulgando vídeos mal editados e imagens caluniosas contra seus opositores. A falsa e absurda história do bolsa puta, e do "o pedófilo é essencial no desenvolvimento da criança" continuarão a ser divulgados nas redes sociais. E cada vez que alguém criticar a calúnia, repetirá-se o bordão de "é livre a expressão", como se isso justificasse difamação e fraude.

Ou sequer um grande exposeé sobre o continuado genocídio da juventude negra nas grandes metrópoles, cometido com aparente prazer por nossa polícia. A cada nova morte, vai continuar se repetindo o mantra de "bandido bom é bandido morto" - contanto que esse seja pobre e preferencialmente negro - independente do que o falecido fazia o fez. Se levou bala, é bandido, não? E acompanha ainda o bordão... "não sou racista, mas...".

Não teremos mais do que uma página noticiando a triste realidade da disparidade de 36% nos salários de negros nesse país - independente do grau de ensino, antes que se alega que é ligado a educação - ou qualquer comentário a respeito do preconceito gritante no perfil desejado para trabalhadores, ao menos não fora da mídia alternativa.

Nada se levará a julgamento ou se comenta sobre esquemas descarados de sonegação de impostos, superfaturamento e lavagem de dinheiro. Bancos e empreiteiras continuarão imunes as repercussões de seus próprios atos criminosos - afinal, corrupção é só culpa de político.Tolamente se continuará comprando produtos supervalorizados, e continuarão se ouvindo desculpas de que "é o imposto", que de alguma maneira milagrosa faz os produtos quintuplicarem de valor (ou mais) - e não a ganância desmedida do empresariado ou a tolice do consumidor que aceita tais preços.

Continuaremos com uma taxa de estupro superior a de homicídios - em si já absurda - e com figuras públicas alegando que não há definição legal de estupro; que o atendimento médico-legal a vítimas de estupro é uma tentativa rasteira de legalizar o aborto (que já é legalizado para esses casos); que cultura de estupro não existe, e é só vitimismo; ainda teremos aqueles que veem uma menina de 11 anos ser bolinada pelo professor, e condenam a menina, não o professor, e que frente a um relato de primeira mão, documentado e registrado de um estupro explícito, acham que é armação.

E no nível mais básico de todos, passado tudo isso ainda não se aprendeu o que cada esfera do governo faz, cada poder faz ou quem fez o que; Culpa-se Dilma por algo que aconteceu quando ela não estava no governo; pelos excessos do governo carioca; por leis absurdas e o preço da passagem; pela fragilidade das escolas estaduais; pelas falcatruas das secretarias municipais da saúde; passados meses que o homem já voltou ao Senado e assumiu a presidência do mesmo, ainda chamam Renan Calheiros de mensaleiro; A urna eletrônica que FHC implementou agora virou complô do PT para roubar eleições; analfabetismo e ignorância política, uma marca de orgulho.

Mas ei... isso tudo é só coisa de petralha querendo desviar a atenção, não é mesmo? Os mensaleiros foram condenados, não tem mais corrupção, assim como não havia antes do PT. Qualquer um que diga o contrário é pago pelo PT, não é? Festejemos...

sábado, 2 de novembro de 2013

O preconceito, o ônibus, e eu.

Em um ônibus precisamente como este,
eu senti na pele o que é ser discriminado.
E não, não é algo que "se leva numa boa
e se deixa para lá". 
Essa semana senti na pele o preconceito: por virtude de meu status como estrangeiro, eu (juntamente com três cidadãos obviamente estrangeiros - duas árabes e um terceiro que presumo ser do leste europeu) fui grosseiramente enxotado para fora de um ônibus na linha 2A; aos gritos e empurrões, três dinamarqueses de seus 20 e poucos anos nos impediram de embarcar no coletivo. Pensei que fosse talvez pelo excesso de gente, mas não impediam os loiros dinamarqueses de entrar. E quando eu proferi a ingenua frase - "I don't understand" - veio a resposta derradeira e chocante:

Get out! Get out! This bus is danes only! Get out!, seguida de berros e o que eu presumo serem insultos em dinamarquês. Um cruel choque de realidade, um soco na boca do estômago; Não importa o quão "bela" e ordeira seja a Dinamarca,a xenofobia é uma realidade mundial - seja em "utopias" como os países nórdicos, nos BRICs ou em rincões do terceiro mundo, parece que o "outro" - não o individuo, mas "aquele que está fora do grupo - é digno de desconfiança, maus-tratos e violência.

Mês passado, um colega meu foi vítima do mesmo tipo de discriminação, mas em uma forma menos escandalosa - entrando em um órgão governamental, foi acossado por um segurança informando o que a porta principal é para "europeus" e que "gente do terceiro mundo" deveria entrar pelos fundos - e que "aqui, ao contrário do seu país, temos regras e horários". Tudo em um tom agressivo e condescendente, segundo meu colega - como se se dirigissem à um animal ou uma criança pequena.


Um dos mais populares argumentos para se negar a existência de racismo e xenofobia é a velha alegação, de que o preconceito "é contra pobre, não é pela cor/por nacionalidade". Mas isso cai por terra com uma análise cursória do preconceito sofrido por quem é "diferente". Preconceito não vê carteira: o fato é que a ganancia pode fazer o preconceituoso deixar de lado suas pré-concepções para lucrar um pouquinho. E isso não impede coisas como Oprah Winfrey ser vitima de racismo, apesar de todo o seu vasto poder financeiro.


Quando eu cursava biologia marinha, um colega meu foi profundamente discriminado em um hipermercado - questionado do porque de parecer tão ressentido após as compras de uma festa, ele deu uma resposta simples: "o tempo todo que estivemos no supermercado, tinha um funcionário me seguindo", como se para "garantir que ele não roubasse nada". Parece nada, mas raramente esses casos menos violentos são exceção. 

Uma das maiores demonstrações
de preconceito sistematizado -
tabela de identificação de negros
"criminosos ou insanos"

E vem acompanhados do estigma pesado dos esteriótipos: negros são preguiçosos, criminosos e "querem nossas mulheres". Homossexuais são pervertidos, drogados e pedófilos. Muçulmanos são terroristas que querem destruir nossa civilização. Judeus são gananciosos, mentirosos e controlam o mundo. Latinos são preguiçosos, burros e só pensam em sexo. Melhor não dar emprego para esse ex presidiário pois senão ele vai me roubar, pois sabe como são (ignorando que sem emprego, óbvio que ele voltará para o crime) - e por aí vai. 


Pode parecer raro que alguém diga abertamente que acha que "mendigo devia virar comida de peixe", mas o clichê de mendigo como bêbado e drogado é um lugar comum - e falso. Poucos são os que expressam desejos violentos contra muçulmanos, mas convencionou-se dizer que são terroristas, assassinos, incapazes de conviver em sociedade. Diz se que o racismo é coisa do passado, mas quando um rapaz negro é baleado sem motivo nos EUA, se verifica o passado do garoto morto - pois é óbvio, é negro, deve ser parte de gangue, certo? -, enquanto seu assassino sai ileso - e em uma demonstração do preconceito naturalizado, a jornalista negra da Fox News ainda completa que "o único motivo pelo qual não se achou uma arma, é porque não procuraram direito".

É fácil para quem não lida constantemente com isso - como é, admito, o meu caso - dizer que preconceito é uma coisa do passado, que minorias deveriam simplesmente "deixar pra lá", e ignorar, porque "sempre vai acontecer". É realmente fácil. Mas quando se vê a realidade das coisas - quando se lida com a policia atirando em alguém que está tentando em entrar no seu próprio carro; quando um rapaz vai preso por fazer compras com seu próprio dinheiro; quando a morte de rapazes pobres da periferia é "regular demais" para as notícias, e quando um menino de dez anos é chamado de terrorista por rezar em árabe, a situação é grave demais para agir como se "fossem casos isolados". 

Não muito diferente da oposição ao casamento LGBT,
direitos da mulher, religiões minoritárias, ateus
ou a entrada de imigrantes islâmicos no país.
Eu não sei se o que aconteceu comigo foi uma exceção, se tamanho grau de preconceito com estrangeiros é uma raridade na sociedade dinamarquesa e eu simplesmente dei azar. O que posso dizer é que ao menos para aqueles grupos tradicionalmente discriminados - imigrantes de países africanos e islâmicos, árabes e negros - é perceptível sob um olhar mais atencioso o quão não bem vindos eles são. Um professor da universidade de Aarhus levantou-me a seguinte questão: não fosse a legislação progressista e igualitária, como seria a Dinamarca? Se não houvessem leis contra o preconceito, como seria o Brasil? E se não existe preconceito... porque lutar contra leis que o punam?

A resposta para nenhuma dessas perguntas é agradável, e revelam a podre verdade quanto a intolerância. Fácil dizer que ela sempre estará lá - e talvez sempre esteja -, mas isso nada mais é do que uma desculpa cínica para negar-se a lutar contra, deixar o preconceito vencer e ficar calado. Ou pior: é uma maneira de não admitir que está defendendo o lado opressor nesse debate - como fazem aqueles que, frente ao seu "comediante" favorito sendo processado após humilhar em rede nacional a maior doadora de leite do país, alegam que a vítima está oprimindo o agressor

Quem sabe o preconceito seja algo que todos devam experimentar uma vez na vida - para mudarem de perspectiva, verem que não é "só opinião" quando se diz que ""tem se razão em não querer contratar negro" - coisa que já ouvi muito - e não é algo "inofensivo" quando se sai dizendo no congresso nacional que "homossexuais querem abusar de nossas crianças" (por sinal uma repetição do líbelo de sangue contra judeus). Como diria Isaac Asimov... "O problema é que esteriótipos raciais, prejudiciais a todos exceto homens brancos de ascendência norte-europeia, eram completamente aceitos, e de fato, pouco notados naqueles dias de apenas quarenta anos atrás [1930] (exceto talvez por membros dos grupos por eles vitimizados)". É fácil negar o preconceito, quando não é você que apanha com ele. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Do furacão que perdi.

A maior tempestade em 14 anos.
fonte: Conpenhagen Post
Nesta segunda feira, um fenômeno pouco usual passou pela Dinamarca, e parcialmente atingiu Aarhus. Pela primeira vez em minha vida, eu, acostumado com as nossas tempestades de vento e chuvaradas causadas por frentes frias, estive dentro da área de efeito - certo que na borda - de uma tempestade com força de furacão. No horizonte, vinham os ventos, com velocidade de até 194 km/h, como não vistoss no país desde 1999.

Depois de ter passado seis dos 12 meses de 2011 cobrindo tormenta após tormenta no Vale do Itapocu, eu estava animado: eis a minha chance de fazer aquele trabalho excitante outra vez! Sem meios para ir "a campo", eu esperei a tempestade passar para cobrir os danos, excitado, mesmo com sabendo da inevitável tragédia que antecederia minha chance de cobrir.

Mas nas redondezas do meu dormitório
, a extensão dos danos foi essa:
Alguns galhos caídos, e uma arvore
 parcialmente desenraizada
Esperei, e perdi: enquanto no centro de Aarhus os danos foram extensos e pesados, nas redondezas do pequeno dormitório em Ellemarksvej 64, na lateral da Marsellis Boullevard, os danos podiam ser resumidos e noticiados em uma única e desinteressante frase: "vendaval arranca dois galhos" - essa era quase toda a extensão do dano ao redor da Marsellis Boulevard. Dois gallhos, algumas placas de campanha, e um monte de folhas. À menos de 200 metros, uma árvore fora quase arrancada do chão - mas era só isso, nada mais.

Pouco mais longe, no centro, a caixa de luz de um semáforo foi arrancada de quebrada pelo vento. No centro o dano era mais extenso, e não foram poucos os galhos arrancados vistos, placas viradas, latas de lixo caídas, postes danificados - mas ainda assim, talvez graças a eficiência européia, talvez pelo meu azar, tudo já estava "limpo" - não peguei o mais grave durante a noite, e durante o dia nada mais havia para ser reportado. Ou sequer fotografado, já que o trabalho de limpeza estava feito muito antes de eu chegar em qualquer lugar.
fora arrancado pelo vento.
Pouco mais ao centro, semáforo 


Fora da cidade, estradas foram bloqueadas; linhas de trem desativadas; cabos de força foram cortados e árvores derrubadas; vidraças destruídas pelos mais variados objetos; carros virados e barrancos deslizaram. 71 Pessoas foram feridas e uma morreu atingidas por telhas, árvores e os mais variados objetos. Mais de cinquenta linhas de trem foram desativadas. Uma verdadeira tragédia - mas também material cheio para um jornalista. Pena que em um golpe de sorte - ou azar, tenho minhas dúvidas - escapei de qualquer risco. E também de qualquer história.

Longe do centro e em outras cidades, como Compenhagem
no entanto, danos foram extensos e pesados. fonte: Conpenhagen Post
E esse foi o furacão que eu perdi. Por um acidente do acaso, falta de ousadia, ou estar no lugar errado na hora errada, nada peguei além do som do vento e dois galhos caídos. Nada pode se comparar ao grau de frustração desse resultado; a total ausência de qualquer realização ou matéria como resultado de uma experiência inédita e incomparável.

Essa foi a maior tempestade que passou pela Dinamarca desde 1999; uma anomalia climática sem igual na história recente, e que deixou mais de 1 bilhão de coroas dinamarquesas em danos (cerca de 400 milhões de reais) segundo as primeiras estimativas (para fins de comparação, a de 1999 causou 13 bilhões de coroas em danos - 1% do PIB) - e eu a perdi. Então eis a minha história: como eu perdi a maior tempestade a atingir a Dinamarca em 14 anos, pelo capricho de estar em uma região que mal fora afetada. O máximo que ouvi foi o uivar dos ventos - o máximo que peguei após a tempestade, o pouco que não foi retirado. Deveria ter saído no vento e na chuva, desbravado o vendaval? Provável. Teria uma história melhor se como alguns colegas, estivesse na estrada, ou na estação de trem? Certamente.
fonte: Conpenhagen Post


Mas como não estava... perdi. E com isso.. fiquei com uma história de fracasso. C'est la vie.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Burocracia não é só "coisa do Brasil", e nem sempre é ruim.

O labirinto burocrático não é só "nosso" , mas muitos se
recusam a reconhecer isso. 
Muito se reclama da (admitidamente imensa) malha burocrática existente no Brasil - e com razão, visto que essa é uma inegável fonte de obstruções, lentidões e frustrações em todos os setores da sociedade. Mas há uma parte da constante reclamação sobre a burocracia brasileira que não é de forma alguma razoável:  a estranha ideia de que a lentidão burocrática existe apenas no Brasil, que o resto do mundo é desprovido de problemas burocráticos, e que só nós enfrentamos esse tipo de chateação.

Estou vivendo na Dinamarca há dois meses - uma experiência que tem sido reveladora (e me iluminado quanto a vários problemas pessoais, mas isso é outra história) - e já lidei com alguns pesadelos burocráticos desde que cheguei aqui. Para começar com os documentos: desde que cheguei, recebi já quatro documentos - e amanhã tenho que ir fazer mais um - cada qual com a sua pequena complicação. Os dois com menos problemas foram a NemID (um documento geral dos países nórdicos - e mesmo essa não foi sem transtornos¹) e a carteira de estudante da Escola Dinamarquesa de Media e Jornalismo. Tranquilos. Foram as únicas onde as vias para fazer eram óbvias. 

Sabe, não teria sido chato  fosse só a demora. O problema foi
a falta de sentido e de coerência. 
Já o CPR (vulgo a carteira de identidade/previdência social/saúde pública/tudo mais) foi um pequeno transtorno: O processo inicial foi tranquilo, e um período de espera de duas à três semanas não parece tanto quando tem que se levar em conta que é imigração. Até o ponto que o documento não veio. Aí fui atrás... em um processo que demorou muito mais tempo do que eu poderia imaginar

Duas vezes liguei para o Borgerservice: na primeira fui informado que "o documento estava no correio" e logo chegaria. Dois dias depois, ligo novamente e sou informado de que "não estava no sistema". Vou pessoalmente ao Borgerservice, e sou informado - depois de explicar o que havia me sido dito - que "meu yellow card estava no correio e logo chegaria", e que era para eu esperar mais uma semana. Depois de uma semana, lá fui eu em pessoal perguntar do meu documento outra vez... E o que tive de resposta? "O senhor não está no sistema, vai ter que fazer tudo de novo, venha amanhã com o seu passaporte e a carta do consulado concedendo o visto". E assim fiz... para ser informado que meu yellow card "estava lá havia 10 dias".

Mas esse incidente de incompetência não é o motivo pelo qual digo que aqui é um pesadelo burocrático. O fato é que tudo nos países nórdicos gira em torno de documentações, regras e regulamentações que muitas vezes não fazem sentido. Por exemplo: Aarhus é a segunda maior cidade no país, com 250 mil habitantes - uma cidadezinha para os padrões brasileiros, mas algo gigantesco para a Dinamarca. E apenas um banco na cidade realiza depósitos e transferências. Nada de depósitos ou transferências online, ou em caixa eletrônico, por exemplo. Quer abrir uma conta no banco? Você precisa da sua NemID. E depois tem que esperar de oito à 10 dias úteis para voltar ao banco para finalizar a abertura da conta. E isso se não houverem problemas. 

Burocracia não é bem isso. 
Quer imprimir algo na biblioteca estadual, fazer encomendas em algumas (muitas) lojas, comprar algo mais caro, um plano telefônico, alugar um apartamento em alguns casos? Tenha seu CPR em mãos. Precisa de atendimento médico e não é parte da União Européia? Tenha seu CPR em mãos. Documentos como esses são necessários para absolutamente tudo por aqui. E à um nível impensável para brasileiros. Claro - as reclamações mais comuns sobre a burocracia no Brasil dizem respeito a abertura de empresas e outras questões de negócios, e nesse sentido a Dinamarca está muito a frente: registro pode ser feito online (o que levanta a pergunta de porque a requisição de uma senha nova, por exemplo, não pode), e leva de duas à três semanas, ao contrário dos cinco meses do Brasil. Mas não é aquela perfeição toda. 

E aquele problema que tanto nos motivou a ir às ruas inicialmente (antes de gente que não estava nem aí para o que começou os protestos tomar conta), o preço das passagens de ônibus? Espantosos 20 kr por passagem (cerca de três euros). Há meios mais baratos, como passagens mensais (350 kr para um mês todo, cerca de 50 euros), mas ainda assim é uma facada. E caso seja pego sem passagem? A multa - administrada por uma companhia de segurança privada - é de "meros" 750 kr : 100 euros. Eu diria que a qualidade justifica - mas não justifica: até agora não vi um ônibus no horário, e já fui pego em uma cilada por um fiscal que entrou no mesmo ponto que eu, me multando antes que eu pudesse comprar minha passagem. 

Na teoria, é isso.
O fato é que burocracia é um problema mundial: é uma parte inerente da existência da infraestrutura estatal - ou me atrevo a dizer, administrativa - , e embora não tão ineficiente quanto a burocracia brasileira, a malha burocrática dos país desenvolvidos (salvo dos EUA, que é tão ineficiente quanto a nossa - pergunte a um americano, ou pesquise sobre a burocracia dos DMVs, por exemplo. Deixarei uns links sobre a burocracia americana ao fim do texto) é muito mais extensa do que a nossa. Só que é muito melhor gerida também. Enfrentamos problemas que incluem (mas não se restringem à) falta de comunicação entre departamentos, pessoal mal preparado e indisposto, corrupção e interesses escusos, falta de clareza nas normas, e conflitos entre regulações e leis estatais, municipais e federais. Talvez não haja obra melhor sobre o labirinto burocrático que as vezes se forma do que o Processo, de Franz Kafka - e o caráter surreal e onírico da obra diz muito do quão confusas são as vias burocráticas. 

Na prática muitas vezes vira isso.
Quando se pensa em governo, o que normalmente vêm em mente para a maioria das pessoas são os cargos eletivos - prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores e presidentes. Mas isso é apenas uma face do governo, a mais "pública" dela. Claro, estes são os governantes e legisladores. Só que o verdadeiro trabalho é realizado nas secretarias, superintendências, departamentos e outros órgãos burocráticos que cuidam de "por a mão na massa" e transformar os planos de governo em algo real. E sim - estes são muito falhos, não por uma característica inerente, mas por problemas como os acima, e que podem (e deveriam há muito) ser resolvidos. 

A melhor maneira de pensar a burocracia (e como ela tem problemas) é pensar em governos como empresas: Ninguém é tolo de pensar que o CEO de uma multinacional é o responsável por cada ação da empresa, certo? O que se tem é uma malha de gerentes, subgerentes, diretores, executivos e administradores que vão repassando o plano de metas da empresa para algo concreto - e o mesmo acontece com o setor público. Isso é a burocracia: essa comunicação que no caso do Brasil é lamentavelmente falha, e no caso da Dinamarca... meio que cobra demais do cidadão, ao menos no meu ver. 

Pra quem acha que é só o estado que é burocrático
fonte: Murilo Gun
E é meio que cômica a obsessão que certos governantes brasileiros (cito aqui o eterno Luís Henrique da Silveira, para começar) com "descentralizar o governo" para reduzir a burocracia. A burocracia é justamente toda essa malha de setores e subsetores tentando se comunicar entre si para um fim em comum - criar mais subdivisões e outorgar mais autoridades regionais nada vai fazer para reduzir a burocracia, a não ser que o fim seja um governo "estadual" que na verdade são vários governos diferentes que não se falam - e aí o problema é mais embaixo. 

Sim, burocracia é um saco; é uma das coisas mais chatas do setor público (e como qualquer um que trabalhou sabe, é uma das coisas mais chatas dentro de empresas também, afinal a administração empresarial é ela também imensamente burocrática); Mas é também algo que é lamentavelmente necessário para a manutenção de qualquer forma de estrutura de proporções significativas, mais ainda de nível federal. Claro - a malha não precisa ser o caos que é no Brasil, mas dada às proporções será inevitavelmente avantajada. Só tem que ser bem cuidada. 


Mas que é chato é. E como. 

Dessa vez, os links ficam no fim do texto, para fins de organização

¹Entre outros transtornos: o sistema mudou minha senha sem me consultar; Para requerer outra senha, você tem que esperar a nova pelo correio; o telefone para o atendimento e suporte não funciona, os dois números disponíveis te quicam um para o outro como o anterior sendo invalido; 





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Trolls, livre expressão e repercussões.

Em setembro deste ano, o jornal NewYork Post foi alvo de criticas por usuários anônimos após publicar um exposeé do paramédico Timothy Dluhos - mais conhecido no twitter pela alcunha de "Bad Lieutenant". Usando uma foto de Hitler com imagem de perfil, Dluhos postava diatribes racistas quase que diariamente, juntamente com comentários sexistas e homofóbicos, fotos de armas e ameaças. Após a exposição, Dluhos se demitiu para escapar de um processo administrativo, alegando ser "perseguido e hostilizado", e apoiadores lançaram uma série de ataques contra a repórter que o "desmascarou".

O maior troll da internet - ou era
Essa não foi a unica, e nem a ultima vez que a divulgação de um "troll" notório atraiu legiões anônimas em defesa do acusado, muitos alegando que seus crimes "não são de verdade". Em março de 2012, o site Gawker.com se envolveu em uma "guerra particular" com o Reddit. O motivo: a exposição de Michael "violentacrez" Brutsch, moderador de dois subreddits, os infames /creepeshots/ (fotos "intimas" retiradas sem o conhecimento da vítima) e /jailbait/ (com fotos retiradas dos perfis online de adolescentes). No entender dos usuarios do site, revelar publicamente a identidade de violentacrez seria um ataque a liberdade de expressão, muito mais grave que os frequentes discursos racistas, violentos, sexistas e em prol da pedofilia de Brusch.

Em julho, o chefe de polícia de Gilberton, Pennsilvânia Mark Kessler virou noticia na internet ao postar vídeos fazendo ameaças a membros de alto escalão da administração Obama, onde atirava em fotos de palhaços que serviam de proxies para John Kerry, Nancy Pelosi e o presidente Obama, dizia que iria matá-los, e que descarregar pentes inteiros era "o que deveria ser feito" com "liberais". Depois de virar "famoso" na web e ser alvo de críticas, Kessler passou a dizer que "estava sendo atacado e perseguido". 

Em março de 2012, os editores do blog Silvio Koerich foram presos na Operação Intolerância da polícia federal. O blog acumulou 69.729 denúncias por crimes de ódio. Segundo a polícia federal,  "As mensagens faziam apologia à violência, sobretudo contra mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus, além da incitação do abuso sexual de menores. Os criminosos também apoiaram o massacre de crianças praticado por um atirador em uma escola na cidade do Rio de Janeiro em 2011". Além disso, o nome do blog em si era criminoso, assumindo o nome de um usuário que havia criticado as declarações preconceituosas dos dois em fórums feministas. 


Esse tipo de "humor"
Este ano o Testosterona Blog perdeu o apoio financeiro da rede MTV depois de meses sendo criticado por conteúdo misógino (listado aqui). Entre outros problemas, o blog era conhecido por divulgar vídeos tratando estupro como um misto de piada e "direito do homem", compartilhar material do acima citado, promover a violência contra a mulher, e tratar espancamentos e homicidios conjugais como algo "engraçado". Caso similar ocorreu com a(s) página(s) Lobo da Insanidade, repetidamente removida do facebook por violações dos termos de uso, a série de páginas "de humor" tinham na sua "piada" central o imperativo "ESTUPRE".

É que abundava nas páginas citadas
Não é de hoje que o direito a livre expressão tem sido mal entendido. Não raro, ignora-se a parte que diz "vedado o anonimato", atropela-se a expressão alheia, considera-se que livre expressão significa estar imune a repercussões, veem se críticas como sendo censura, ataques como "opinião", e contradição como perseguição. Ao mesmo tempo, age-se como se "a internet" fosse alguma realidade alternativa, e as ofensas ali feitas não "valessem". O meme todo mundo conhece: a internet é "uma terra sem lei", onde todas as ofensas, calúnias e difamações, toda misoginia, racismo, elitismo e intolerância são permitidas e até incentivadas. A esquiva também: "é só minha opinião" e "estão tentando censurar minha liberdade expressão". "Não alimentem os trolls" se mistura com "no mundo real eu não faço isso" no estranho balé de trollagem e apaziguamento.

Vale lembrar que quando se trata de "opiniões ofensivas",
pessoas tem direitos, não idéias ou ações - ou seja: não se
abre possibilidade de alguém ser punido por difamar "uma
ideia" - como querem religiosos fanáticos ao punir por
difamar "o islã" ou "a fé cristã"
De fato, a liberdade de expressão é um direito essencial, mas isso não deve servir de prerrogativa para abusos: a livre expressão não é desculpa para ofensas, e menos ainda para calúnias, ataques e violações de direitos alheios. Não a toa existem leis cobrindo tais formas de expressão; falem o quanto quiser em "liberdade de opinião", mas acusar - sem provas - alguém de "defender a pedofilia", como foi feito com um certo deputado, postar imagens promovendo xenofobia, racismo, estupro e insinuando que "negro é tudo bandido", como feito pela página da PMFEM do Rio, pedir que se torturem presos, ou os usem para experimentos, ou chamar quem come carne de "carnista desprovido de empatia" e insinuar que cientistas são nazistas por fazer experimentos com animais (enquanto alguns dos tão empáticos vegans pedem pra que sejam feitos em pobres - errr... bandido¹) ainda são ofensas dignas de critica - quando não tipificam crimes. Ninguém deve ser punido por expressão, mas o resultado dessa expressão é outra história. Essa liberdade não incorre em esperar que ninguém reaja, critique, ou em casos extremos, levante queixas legais. Claro, o direito a crítica deve sempre permanecer - mas crítica não é inventar coisas, ou insultar, ameaçar e difamar.

O choro do racista exposto.
A expressão contrária ainda é livre expressâo - ou seja: se você defende a livre expressão irrestrita, você logicamente tem que defender o direito de outros de criticarem-no por sua expressão. Quando confrontado, Dluhos caiu no choro, se sentindo lesado pela repercusão de seus atos - e ignorou completamente que o problema não era a exposição, e sim o que ele fazia. Brusch foi demitido por defender e divulgar conteúdo que beirava a pornografia infantil e promover racismo e homofobia, entre outros motivos pelo qual à época se demonstrou completamente não arrependido. Redditors julgaram "injusto" que ele fosse punido pelo que disse "no mundo virtual". No caso de Dluhos, o departamento de bombeiros de Nova Iorque investigar um notório racista que pregava violência contra minorias foi tratado por internautas "preocupados" como "patrulhamento ideológico", quando não era "ditadura do politicamente correto". Em ambos os casos alegava-se que "a persona online" não interferia no mundo real.

Alguns chegaram ao ponto de comparar a "violação de privacidade" do autor de fotos intimas de meninas e o neonazista do twitter com "expor a identidade de lideres de movimentos civis". O que me levanta a pergunta: violentacrez nunca respeitou o direito a privacidade das garotas que fotografava ou postava online, porque teria ele o direito a privacidade? E que movimento civil ele representa, para considerarem sua exposição como "um ataque a liberdades civis"? O dos pedófilos homofóbicos e racistas? Dluhos é o legitimo representante dos neonazistas oprimidos? Seria o Testosterona blog um defensor do machista oprimido e agredido pela "opressão feminista"? O militarismo do policial Kessler seria a defesa do "gunnut" contra a estranha "violência" de quem quer uma sociedade mais igualitária e menos violenta?

Isso, só isso.
É um tanto óbvio que não são brancos racistas, homofóbicos e machistas quem tem sofrido com violência nos tempos de hoje - do contrário, não teríamos advogados acusando meninas de treze anos de mentirem sobre estupro, estudantes de jornalismo informados a usar a porta "de gente de país de terceiro mundo" e deputados alegando que o que os movimentos de direitos LGBT querem é "molestar crianças³", enquanto outro deputado diz que negros africanos são amaldiçoados, (mas nem todos, pois tem brancos na África).

Pode-se dizer que a internet hoje é como o cangaço ou o faroeste - uma terra sem lei. Mas fica a pergunta se a ordem nesses locais foi estabelecida com a presença da lei, ou a lei se estabeleceu como resultado da ordem? Não estamos mais nos tempos das Usenets, onde apenas um punhado de especialistas tinham acesso a internet, e qualquer coisa valia. Quanto mais usuários se fazem presentes, mais surgem formas de regular o que está acontecendo - e isso não é necessariamente ruim. Claro - não pode se abrir espaço para leis autoritárias, como o que ocorre no oriente médio, mas há de se coibir práticas criminosas, como discursos de ódio, pornografia infantil e difamações. Teme-se a mão pesada da lei, mas se ignora o fato que, evitando abusos, a lei há de ser sensata. Sim, temos inúmeros casos de artistas e políticos buscando tirar conteúdo da Web - sem sucesso, por não terem base legal para isso²; Não é com difamação e ameaças que isso será mudado - esse método só tende a dar a quem quer esconder algo os meios legais para isso. 

Não estou advogando por censura aqui, e sim por responsabilidade - correr adoidado espalhando falsidades e atrocidades é pedir pelo fim da liberdade na internet, da mesma maneira que redes sociais ignorarem o abuso constante é pedir para que os usuários ofendidos busquem a lei para ampara-los. O ideal, de fato, é que não hajam leis, exceto para extremos como pedofilia, calúnias organizadas e ameaças concretas de violência. E como qualquer pessoa sensata me oponho à existência de "órgãos de policiamento da internet" - qualquer queixa cabe a parte ou partes ofendidas, amigos e simpatizantes, e salvo exceções, serem resolvidas junto a empresa ou grupo que faz  o hosting do material ofensivo; a existência de órgãos e instituições para esse fim leva a corrupção e autoritarismo. Denúncias e queixas pessoais podem ser abusadas, mas não ao mesmo nível que "uma polícia da internet" que fique fiscalizando tudo que foi dito a priori

Claro que censurar o direito a críticas, opiniões políticas, divulgação de fatos (leia: não de fraudes), registro de irregularidades e de abusos por partes das autoridades, questionamentos da ordem pública e opiniões negativas sobre os "poderosos" e os famosos é um absurdo - mas o que defendo aqui é que isso não é motivo pelo qual deva se ignorar os males causados por opiniões em prol do ódio contra minorias, 

O que acontece, com ou sem leis. 
De forma curiosa, aqueles que mais clamam pela liberdade de expressão quando criticados são os que  mais cerceiam a liberdade alheia. Esta semana, um post do Deputado Federal Jean Wyllys criticando a conduta antidemocrática da bancada ruralista - que incluiu uma agressão física a outro deputado do PSOL - foi alvo de repetidas denúncias e removido do facebook, enquanto páginas e mais páginas pregando violência contra o deputado carioca se mantém no ar. Os grandes empresários são fortes defensores da livre expressão quando os interessa - e fortes opositores da mesma quando se dá na forma de denúncias e protestos contra os mesmos. o direito a Expressão muitas vezes está diretamente ligado ao dinheiro - chegando a extremos como o caso Citizens United, no qual a Suprema Corte dos EUA considerou que dinheiro e financiamento de campanha são igual a expressão.

Os defensores da livre expressão quanto ao discurso de ódio, e que acham que não critica e réplica são violações do seu direito de falar o que querem sem consequência. 

isso foi censurado...
Mais cedo neste mês, a página "Meu professor de história desistiu de mim", de critica e ocasional escárnio da ultra conservadora "Meu professor de história mentiu pra mim" foi removida. As fotos do ator gay Jesse Jackman com seu marido, Dirk Caber, foram removidas sem aviso e Jackman foi suspenso da rede social. A rede não ofereceu explicações para o ocorrido, e simplesmente colocou a imagem de volta no ar alguns dias depois - sem explicações. Jackman comentou o seguinte sobre o imbróglio: 
"[I have] received multiple public death threats after posting this photo, endured countless homophobic slurs, and received dozens upon dozens of hate-filled messages, and yet Facebook did nothing about those disgusting comments, choosing to censor love instead of hate."

Mas isso não.
Aquilo que o facebook supostamente proíbe - a realidade
é outra. 
Isso quando o argumento da livre expressão não é usado em resposta a exclusão, ou a moderação em um forum online, ou ao banimento de usuários problemáticos. Não poucas vezes, apesar dos insultos diretos ao usuário excludente, o excluído age como se ser amigo online fosse seu direito - e as vezes, veem se defesas dessa mentalidade (que parece estar relacionada as falácias sociais nerd, particularmente a que diz que nunca se excluí alguém, caso contrário você é o problema). No facebook, usuários com contas falsas - em si uma violação dos termos de uso - reclamam de moderadores "desrespeitando seus direitos" ao deletar ofensas, ameaças e calúnias, imagens pornográficas e violentas, spams e "trollagens" assumidas; todas violações dos termos de uso que eles "aceitaram", aparentemente sem ler.

O ponto que quero chegar é simples: sua expressão é livre - o estado não vai te impedir de dizer algo - mas isso não quer dizer que esse direito atropele todas as regras de convivência, especialmente aquelas do espaço onde você se encontra. Você não é imune a repercussões de seus atos, ou declarações, não importa o quanto diga que é "só minha opinião" ou "é só uma piada". Ser sua opinião não quer dizer que ela não é preconceituosa, intolerante e ofensiva, assim como o fato de ser uma piada não diminui a ofensa - dependendo da piada, aumenta. Ainda mais coisas como, enfrentando criticas por comentários racistas, perguntar quantas bananas o interlocutor quer pra ficar quieto. 

Você não tem direito algum de ser amigo de alguém, e ninguém tem obrigação de se manter seu amigo, especialmente quando você continuamente ofende essa pessoa, seu grupo social, ideologia, ou etnia. Por último: se vai defender a liberdade de expressão irrestrita... não reclame das críticas. Afinal, elas nada mais são do que o livre exercício da expressão. Sejam consistentes, ao invés de hipocritamente tentarem censurar quem os crítica - na base da violência, muitas vezes, como se vê dos defensores da livre expressão irrestrita quando se trata, por exemplo, de minorias, movimentos anti-capital, ou manifestações "que incomodem". Porque expressão contra o Status Quo já é vandalismo. Da mesma maneira, redes sociais e webhosts tem a obrigação de dar respostas condizentes as queixas prestadas - e não meramente atender umas por terem "maior volume" enquanto deixa de lado queixas contra conteúdo explicitamente ofensivo. Sejamos coerentes. 

P.S.: fazer humor "politicamente incorreto" não te faz revolucionário e inovador - se qualquer coisa, lhe marca como retrogrado; todas as piadas racistas, machistas, anti-semitas e homofóbicas, centrada em velhos clichês e esteriótipos de "comediantes" como Danilo Gentili e Rafinha Bastos já eram velhas quando meu pai estava na escola. Chamar negro de macaco, judeu de sovina e mulher de puta não é inovador. É coisa que deveria estar batida desde que negros e mulheres tiveram seus direitos garantidos.

¹Não querendo atacar o ponto de vista vegano, ou sequer o site Consciencia.blog.br - que usa esse termo com frequência - mas sim ressaltar que é de fato aceitável que pessoas se ofendam com isso. Estou plenamente ciente de que o Consciencia.blog.br é contra a experimentação em humanos, mas não foram poucos os defensores dos animais que vi defendendo essa excrecência recentemente. 

²O resultado usual dessas tentativas de esconder podres, fotos embaraçosas e denúncias é aumentar a dispersão dessas informações - o chamado "Efeito Streisand", em "homenagem" a cantora Barbra Streisand, que em 2003 tentou barrar fotos de sua mansão em Malibu, 

³Depois dessa ofensa de classe, Jair Bolsonaro agora está alegando que a BBC e Stephen Fry estão difamando ele e distorcendo a sua fala, que de homofóbica não teria nada - apesar de ser uma cópia quase verbatim do líbelo de sangue contra os judeus (exceto que com sêmen? líbelo de sêmen?). A fala específica foi : “Eles querem que os heterossexuais continuem gerando crianças, para que essas crianças se transformem em gays e lésbicas para satisfazê-los sexualmente no futuro”